É certo que nós libertários podemos ter certos motivos para olhar com desconfiança para a “Primavera Árabe”. No entanto, não é possível ignorar que, no contexto de confronto social e da turbulência política que estão sendo experimentados em grande parte dos países árabes, estão florescendo alternativas políticas originais. Tudo isso enquanto a desilusão crescente das massas até a democracia “para o Ocidente”.
Aqueles de nós, afortunados o suficiente para manter freqüentemente longos debates políticos ou filosóficos com homens e mulheres árabes, sabem que tanto nossa visão eurocêntrica da história como nossa mania catalogadora de pensamentos e ideologias são dois muros mentais que dificultam a compreensão. O ser consciente desses preconceitos é o que pode nos permitir compreender por que os movimentos trabalhistas de base marxista, e também o anarquismo, não têm sido muito populares na história do povo árabe. Embora o apoio mútuo, a autogestão, a autonomia popular e o sentido do coletivo são uma constante no comportamento social dessas nações. Isso ocorre em qualquer sociedade humana e, em minha opinião, nestas com mais força. Como indica o comunicado de apresentação do Centre Libertaire d’Etude et Recherchement (CLER), “está claro que o pensamento anarquista é marginalizado e que é desconhecido em Marrocos. No entanto, no passado recente, a sociedade marroquina tem tido uma prática libertária em sua vida cotidiana. Esta é uma vida em comunidade, em que a ajuda mútua, a autonomia, a propriedade coletiva sempre estiveram presentes, isto é, que esta prática social cotidiana é conhecida, independentemente de sua classificação ideológica. Era um caminho, onde se observa uma forte relação com o que é chamado projeto libertário. Nesta sociedade, a ação era mais importante do que qualquer classificação ideológica”. Para não ir muito longe, neste artigo só quero referir-me brevemente aos acontecimentos mais próximos a nós, ou seja, os eventos na vizinha nação alauita. Nela, assim como na vizinha Argélia, a agitação social tem crescido exponencialmente nos últimos cinco anos. No entanto, espero ter a oportunidade de dedicar um artigo para o incipiente movimento anarquista sírio-libanês.
Um marco na história do movimento operário marroquino é, sem dúvida, a greve histórica de 850 mineiros de Khourigba, que mantêm há mais de um ano e meio um confronto não só com a patronal da empresa OCP, mas também com as autoridades estatais marroquinas. Os trabalhadores de Khourigba receberam no verão passado a visita de uma delegação da regional exterior da CNT e de outra da CGT.
Além disso, em Ait Bouayach (província de Alhucemas), a cidade tem protagonizado recentemente várias tentativas de ocupação da Câmara Municipal, após o despejo de uma viúva idosa de sua casa. Na mesma localidade tem havido contínuas manifestações e denuncias de corrupção e de crueldade do poder local, desde que em junho deste ano o conflito eclodiu.
Também em Mrirt (província de Khenifra), os protestos contra a atividade da multinacional de mineração Twist deixaram recentemente dezenas de feridos. Neste protesto os elementos trabalhistas e ambientais estão interligados, uma vez que a população também mostra abertamente sua rejeição, tanto à degradação do ambiente natural que produz a atividade de mineração, como as condições de exploração dos trabalhadores na mina.
Também foram dezenas os que sofreram represálias durante o processo de luta de favelas na periferia de Casablanca e Mohammediyya, bem como Baurfa, cidade onde os dirigentes sindicais da CDT (Confederation Democratique des Travailleurs – Confederação Democrática dos Trabalhadores) foram presos.
Com este aumento nas lutas sociais, a população percebe o Estado cada vez mais claramente como um instrumento de repressão nas mãos do poder econômico. No momento, se está degradando a imagem “sacralizada” do regime, liderada pela figura quase sagrada do Rei Mohammed VI, oficialmente aliado com ninguém menos que o Profeta Maomé.
Este processo é muito complicado, pois, como afirmado pelo ativista marroquino exilado na Espanha Hafsa O Habti e seu parceiro Aziz ibn Naser, “no Marrocos as alternativas democráticas são vistas como parte do problema. Como ideologias estrangeiras… as pessoas estão muito apegadas à figura do Rei, e do Islã, porque representam as origens do povo árabe e de uma idealizada sociedade tribal coletiva, diante às agressões de um capitalismo cada vez mais grande e encorajado ante a Coroa. Este tem sido um processo de liberalização econômica e de atração de investimentos que tem significado uma invasão total por corporações estrangeiras que violam e agridem os usos e costumes locais, bem como os direitos humanos”.
Neste contexto, é normal um renascimento das lutas populares. Resta ver o caminho que estas lutas terão, descartado o legalismo monárquico e a democracia ocidental. Honestamente, eu não colocaria a mão no fogo que a alternativa que ao final ocorra seja precisamente libertária. Mas estou segura que será um caminho ligado aos dois valores que compõem a identidade coletiva árabe: o forte senso de comunidade e potente espiritualidade, traduzidos, insha Allah [se Deus quiser], em propriedade coletiva e respeito ao desenvolvimento das virtudes humanas, que, como sabemos, ocorrem apenas quando se desfruta de plena liberdade.
O Centro Libertário de Estudos e Pesquisa – um exemplo da repressão do pensamento anarquista no Marrocos
Em 2006, Brahim Fillali, um sociólogo e jornalista marroquino, de ideologia anarquista, tentou colocar em prática, com outros companheiros libertários, um centro de estudos libertários em Boulmane Dades, província de Ouarzazate. Todas as licenças foram negadas pelas autoridades locais. Apesar disso, Fillali continuou lutando, até mesmo através da greve de fome, pela cessão de uma parcela de terreno público para realizar este projeto. Isso inclui a criação de uma biblioteca, e de encontros de debate, bem como a pesquisa sociológica das tradições coletivas e federalistas dos imazighem (berberes), a partir de uma perspectiva libertária. No ano anterior, tinha sido incendiado o local em que Fillali editava desde 2004 o jornal “Ici et Maintenant” (Aqui e Agora), um bilíngüe bimestral em árabe e francês. Através deste meio, o jornalista havia informado sobre as lutas dos trabalhadores em minas de manganês de Imini, da corrupção das autoridades locais e da violência policial. A luta de Fillali pode ser seguida através do blog www.fibra.over-blog.com.
Por D. Martín Arteaga, estudante de Estudos Árabes e Islâmicos.
Fonte: Jornal “CNT” 383 – novembro de 2011.
agência de notícias anarquistas-ana
Silêncio na caixinha
dentro, dormindo,
a bailarina de sainha.
Humberto Firmo